Redução da maioridade penal para dez anos,
trabalho forçado para presos, castração química de estupradores, prisão
perpétua para reincidentes e pena de morte para corruptos...
Desde
a instalação da comissão de reforma do Código Penal, em novembro do ano
passado, o Senado Federal vem recebendo sugestões populares ao
anteprojeto que está sendo elaborado por juristas e que dirá o que é
crime no país, quais as penas e como elas devem ser cumpridas. Até esta
semana, foram quase 2.500 participações, a maioria pedindo o aumento de
penas, a criminalização de novas condutas e o endurecimento da lei
penal.
O trabalho da comissão de juristas, presidida pelo
ministro Gilson Dipp, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), vai até o
mês que vem, mas será apenas o estopim de uma democrática discussão que
terá início no parlamento. As sugestões estão sendo recebidas pelo
site do Senado e pela linha do Alô Senado (0-800-612211).
A
maior incidência de sugestões trata, na parte geral do código, da
redução da maioridade penal e da revisão da legislação especial
aplicável aos menores infratores; na parte especial, da criminalização
da homofobia e recrudescimento das penas, especialmente quanto aos
crimes contra a administração pública (por exemplo, a corrupção); e, na
execução, as sugestões são para modificar o sistema progressivo do
cumprimento de penas, com ênfase em maiores exigências para obtenção do
benefício.
“O clamor pelo endurecimento das leis reflete o
pensamento da sociedade sobre a segurança pública no Brasil.” A análise é
do ministro Dipp. Ele vê na impunidade a causa deste sentimento social.
Mas o ministro ressalva que o endurecimento da lei não significa a
diminuição da criminalidade.
“Uma boa lei penal, condizendo com a
realidade do Brasil atual, é o ponto de partida, a base, a plataforma
para que as entidades envolvidas na segurança pública, no sistema de
prevenção e no sistema de penalização possam trabalhar adequadamente.
Mas só a lei não basta.” O ministro do STJ afirma que é preciso uma
mudança de mentalidade, de investimentos em polícia técnica, em polícia
civil, em remuneração, no combate à corrupção nos órgãos públicos. “É
preciso, também, um Ministério Público dedicado e aparelhado. E é
preciso um Judiciário engajado e envolvido em ter decisões justas, mas
em tempo hábil”, adverte.
Pena justa Para
o relator da comissão de reforma do CP, procurador regional da
República Luiz Carlos dos Santos Gonçalves, as manifestações recebidas
pelos canais do Senado não demonstram propriamente um desejo de vingança
da população, mas um anseio por justiça e pelo fim da impunidade. “A
sociedade percebe que a lei penal não é aplicada igualmente para todos, o
que gera grande desconforto”, avalia.
Ele acredita que nem
sempre pena alta significa pena justa, e que é compreensível que a
reação imediata a um crime violento seja o clamor por uma lei mais
rígida. “Não podemos nos esquecer de que o crime é sempre a violação do
direito fundamental de alguém: vida, incolumidade física, propriedade,
liberdade, paz... A violência e a fraude destroem sonhos, experiências,
estilos de vida”, explica Gonçalves.
Para o relator do
anteprojeto do novo CP, é por essa razão que a sociedade espera que o
poder público faça frente à criminalidade, evitando que a vida em
sociedade seja a luta do mais forte ou astuto contra os mais fracos. “Se
há um crime violento ou que causa grave lesão social e nada acontece, a
confiança das pessoas no estado democrático de direito fica abalada”,
afirma.
Gonçalves pondera que as penas devem ser proporcionais à
lesão ao direito que o crime causa. “As penas brandas ou que não são
efetivamente aplicadas também são desproporcionais”, avalia.
Sugestões Toda
sugestão enviada é apreciada pela comissão e serve como parâmetro para
saber como pensa a sociedade. “O código está sendo feito nos dias de
hoje, mas projetado para o futuro, num país extremamente plural, como é o
Brasil”, explica o ministro Dipp.
Um morador de Propriá (SE) exprimiu assim sua opinião:
“Os
crimes estão aumentando e ficando cada dia mais cruéis. Acho que não
seria necessário o aumento das penas máximas, mas sim o cumprimento
integral delas.” De Campo Novo de Rondônia (RO), chegou essa manifestação:
“Espero
que aprovem leis mais severas para os crimes de homicídio; nosso país
está um caos, pessoas perdem a vida por motivos banais e o assassino não
fica preso porque as leis são muito brandas.”O aumento do
período máximo de encarceramento – hoje, 30 anos – para 40, 50 anos ou
prisão perpétua também figurou em dezenas de sugestões. Um morador de
Juazeiro (BA) disse:
“Sugiro penas mais firmes, como por exemplo,
castração química de estupradores e pedófilos. Também a instauração da
prisão perpétua para todos os crimes hediondos.” De Santa Maria (RS), um morador opinou em sentido semelhante:
“Aumentar
a pena máxima para 50 anos ou para prisão perpétua. Acabar com absurda
progressão da pena que equivale à quase impunidade. Progressão só depois
de cumprir 85% da pena.” Houve também a defesa da pena de morte para as mais diversas situações. Da cidade de São Paulo, um cidadão sugeriu:
“Pena de morte para quem cometer corrupção com dinheiro público”. Outro, de João Pessoa, opinou:
“Qualquer
crime que prejudique a economia ter como condenação a pena de morte.
Qualquer crime que envolva a vida e a honra dos cidadãos ter como
condenação a pena de morte.”De acordo com o relator da
comissão, a participação dos cidadãos tem sido valiosa em vários
sentidos, não só para revelar opiniões, mas para indicar a necessidade
de algumas proteções penais. O procurador Gonçalves afirma que a
comissão não tinha atentado, por exemplo, para a importância da proteção
dos animais contra violências ou tratamentos cruéis e degradantes.
“Foram os cidadãos que, por meio do espaço na página do Senado, nos
chamaram a atenção para esta importantíssima questão”, conta.
“Pessoas
que cometerem maus tratos em animais devem pegar pena mínima de 25
anos. No caso de tráfico de animais, além da pena, uma multa enorme para
cada animal, e mais ainda por vidas perdidas”, sugeriu um morador da cidade de São Paulo. Uma moradora de Canoas (RS) também abordou o tema:
“Penso
que deveriam considerar crimes de atentado ao pudor, estupro e
maus-tratos a exploração sexual de animais seja por ‘conjunção carnal’ ,
com ou sem violência, e fotos pornográficas mostrando atos sexuais de
humanos com animais, tanto de quem pratica ou agencia esse tipo de
prática.” Código moderno Revisar
um texto de lei escrito em 1940 não tem sido fácil para os 15 juristas
que, voluntariamente, se esmeram na tarefa de produzir o novo código,
mais moderno. O procurador Gonçalves explica que a modernidade buscada
pela comissão é pragmática: a capacidade da lei nova de dialogar com a
sociedade e fazer frente à evolução das condutas criminosas.
“O
tipo penal de formação de quadrilha ou bando não supre a necessidade da
previsão das organizações criminosas; o estelionato não pode ser a
resposta para todos os crimes cibernéticos; o terrorismo precisa ser
definido; o furto de uma bolsa não pode ser equiparado à explosão de um
caixa eletrônico; quem bebe não pode dirigir; quem pratica ‘racha’ ou
‘pega’ deve arcar com as consequências desse tipo de
irresponsabilidade”, assevera.
Da mesma forma que irá tipificar
penalmente novas condutas, o novo CP vai abolir do texto práticas que
pareciam graves na sua edição, mas que hoje não têm mais relevância para
a sociedade. “A evolução dos costumes foi extraordinária nas últimas
décadas. O Código Penal tem 72 anos. Alguns dizem que ele já deveria
estar aposentado compulsoriamente”, diz o ministro Dipp.
Ele
destaca que é preciso que o CP seja o centro de um sistema penal voltado
para punir aquelas condutas que trazem lesão social – como os crimes
violentos contra a vida, contra a saúde, contra a sociedade, contra o
patrimônio público e privado. “Nada impede que esses tipos penais passem
a ser infrações de ordem administrativa ou civil”, sugere.
Problema maior
O
sociólogo Tulio Kahn, doutor em ciência política pela Universidade de
São Paulo (USP), diz que é preciso avaliar o risco da punição. Ele
acredita que a discussão sobre o novo CP é importante, mas não o mais
importante para revolver o problema da segurança pública. Kahn destaca a
relevância de haver políticas de cunho preventivo ou que enfoquem
outros aspectos que não apenas a legislação.
“Não é só mudança
de leis, quem dera! Você precisa de gestão, você precisa de recursos, de
sistema... Mas os meios de comunicação, o Congresso Nacional focam em
resolver a questão mudando a lei”, avalia.
O sociólogo revela
que pesquisas já detectaram haver compreensão por parte da população de
que a criminalidade é um reflexo do problema social, da pobreza, da
falta de emprego. “Uma compreensão que eu diria que é sofisticada do
ponto de vista das causas, mas que é muito pobre do ponto de vista das
soluções. É o repertório que as pessoas conhecem. Não têm alternativas
preventivas. As pessoas acabam embarcando nas propostas de
endurecimento, que são as que, volta e meia, vêm à tona”, critica Kahn.
Com
o foco ainda mais amplo, Eugenio Raúl Zaffaroni, ministro da Corte
Suprema de Justiça da Argentina, assegura que há uma tendência mundial
ao que ele classifica como um “retrocesso dos direitos humanos e das
garantias penais e processuais", paralelamente ao aumento da "autonomia
das polícias”.
“Sabe-se que o aumento das penas e a
arbitrariedade repressiva só servem para potencializar a violência nas
sociedades”, pondera. O jurista garante que o alto índice de homicídios
no Brasil reduziu nos últimos anos e segue diminuindo, o que também
ocorre na Argentina. Para Zaffaroni, a diminuição dos índices de
homicídio nesses países se deve à redução da desigualdade na
distribuição de renda, que tem correlação com a violência.
“O
delito violento só se previne com mais igualdade, mais investimento em
educação, mais universidades públicas, mais acesso à instrução, melhor
distribuição de renda e, especificamente, qualidade técnica, melhoria
das condições de trabalho, profissionalização, dignificação e controle
político e judicial das polícias”, propõe Zaffaroni.
Questionado
sobre a função da pena, o relator da comissão, procurador Gonçalves,
revela que acredita na possibilidade de ressocialização do preso e que
isso não é responsabilidade única dele próprio. “A sociedade que pune
deve, também, oferecer caminhos para que o criminoso volte para a vida
comunitária. As penas servem para ressocializar e, também, para impedir
que as pessoas façam justiça com as próprias mãos”, conclui.